TEMPESTADE MORAL – pensamento filosófico – por Miguel Brambilla

A suntuosidade de um título como este; “Tempestade Moral”, requer algumas explicações para que se saiba primeiramente que não se trata de algum tipo de sermão. Muito pelo contrário. Antes que se pense que estas linhas escritas como fruto de uma vida cheia de altos e baixos, dores e sofrimentos e muitas alegrias é um julgamento, fruto de uma soberba sabedoria. Estúpido na minha opinião é aquele que perde seu tempo julgando o outro, sem julgar a si mesmo e seu envolvimento em cada situação da vida e é esse o maior desafio moral da humanidade atual.

A ética está falida na consciência do corpo. Cada vez mais preso em uma realidade temporária e desgastável, apesar do tanto que hoje se pode prorrogar o envelhecimento e a morte, a galopante estupidez dos hedonistas ainda é tentar desfrutar ao máximo de prazer em anos fugazes que passam como a correnteza do rio, como a sombra de uma águia ao meio dia ao voar pelo céu.

Arrependimentos recalcados ressurgem nas sombras da memória do tolo, como nostalgia de prazer secreto e de vitória sobre o outro, pobre ser enganado, que nem consciência de que foi vítima da sagacidade das víboras que rastejam na dita consciência humana, procurando talvez uma toca, uma uma satisfação para o impossível, a consciência acima do bem e do mal, sobre a responsabilidade da ação.

Não haverá satisfação para o erro, mesmo que se distorça qualquer tipo de ética, que se contorça a verdade, até que ela, desfigurada caiba em uma caixinha de falsidades e hipocrisias, que muitos podem até acreditar que é um caráter em regeneração ou regenerado, ao achar que o tempo, simplesmente o tempo, sem a satisfação de nada, cola os cacos do mal, reúne de volta a profanação ao sagrado e recupera a dignidade do coração imprevidente que se atira ao egoismo da satisfação pessoal e do desequilíbrio louco de si mesmo, sobre o fel das secretas paixões.

Foi assim que chegou até este momento de grandes dificuldades éticas a sociedade terrena. Tergiversando sobre a ética, distorcendo a moral, disfarçando o arrependimento, fingindo assumir a responsabilidade, detestando a culpa.

Na psicologia e até mesmo na religião, se traduz ou se transpõe o termo culpa, por responsabilidade. Mas o irresponsável antiético de ontem, só age na direção do bem, pelo medo de sofrer de novo, então isso é egoísmo. Não age na direção do resgate e da restauração da ética, pela compreensão do prejuízo que causou ao outro. Quando é convidado a se colocar empaticamente no lugar do outro, para quem sabe entender o sofrimento que teria causado, comparando-se como se fosse em si, não consegue também ter piedade e não sendo portanto uma realidade a não ser uma hipótese sugerida de sensibilização da alma, simplesmente não sente, não sofre, não se arrepende, não reflete e somente segue na constante variação temporal em si, sobre as ações da ética em que precisa inevitavelmente refletir, caso queira evoluir, por que mesmo para o louco, o insano, o amoral, o tempo não deixará de passar.

Triste é a religião do louco que não compreende o Deus que há em si, sem passar pela ira e pela fuga da humildade. Acredita-se então merecedor das melhores honras, dos melhores banquetes, dos melhores prazeres e não escapara de tornar-se vitima de si mesmo, já que tudo considera seu algoz. Uma palavra dita em uma conversa, uma metáfora, um conceito político elaborado em um julgamento coletivo sobre a ação de alguma liderança, recairá sobre o coração que guarda obscuridades, como espinhos jogados ao ar e atraídos pelo imã do autoconhecimento, do silêncio em si, como provocações da verdade.

A verdade só dói em que a odeia. Em quem aceita a verdade como imposição pública, pela maioria dos julgamentos, mas tentará se livrar, sempre que possível, colocando na categoria da loucura do “dane-se”, a melhor ética e o melhor amor, fazendo quem ama sofrer ou desistir, por que os caminhos são próximos. O amor que se transforma em ódio nunca foi amor. O amor que cai nos túmulos da indiferença, é o amor cansado, que poderá ser restaurado em uma encruzilhada perdida do eterno destino, mas que adormecido como o Vesúvio, apenas terá fumaças de enxofre e inverdades, por que qualquer erupção trará consigo a evidente lava da derrota moral e da destruição. O amor que se descola na imperfeição dos seres, não terá mérito em si, depois de atravessar o deserto da lapidação, seja pela solidão, seja pela incompreensão, seja pela lei do retorno que só trará insegurança ao egoísta que mede os outros por si mesmo, mas sentencia os outros pela rigorosa lei da punição, enquanto busca indulgências éticas para si mesmo.

Que coração é esse que vive a espreita da inocência como lobo em pele de ovelha? Que se embrenha no silêncio da manhã em residências desprotegidas do conceito de malícia e com o doce sorriso do mal, rouba o coração do imprudente predador que se pensa alfa ao trair e que verá seu castelo ruir logo ali adiante, percebendo quanto amor perdeu ao deixar de lado a pureza do orvalho pelo veneno da víbora traiçoeira, movida pela inveja, que jamais esquecerá no íntimo de sua alma escura, o prazer roubado, vingado, nostálgico.

Esquece-se a bruxa porém, que ao contemplar o tempo que se foi, traz para o presente a sombra de sua maldade e o retorno do próprio feitiço, inflamando o próprio cálice do amor que estaria pronto para lhe dar a pureza do ser. Ao não repor de volta em oração, em reparação, em arrependimento a condição de distorção de suas maliciosas vibrações, de seus terríveis suspiros loucos, cola na chaga do presente, a faca quente que fere de morte o coração que ama, deixando apenas o pus e o fel no vazo da felicidade, até que as moscas também morram por sua podridão ensandecida.

Haverá maior tristeza para a alma que desama, do que a desconfiança de um verdadeiro amor? A vergonha profunda de uma traição gratuita, por uma lembrança fugaz e inconsolável de um tempo que se foi e que nunca deveria ter sido?

A tempestade moral do ser atual tenta livrar-se destas divagações na relação com outro, tentando curvar-se com as costas arqueadas do peso da culpa disfarçada em escoliose, em corcunda, em corcova de camelo, incapaz de olhar nos olhos sem fritar o tempo em hipocrisias e ilusões que talvez nunca mais se confirmem, por que seu perdão foi arrancado, não foi sentido.

Mas em tudo isso, não desanimemos nós, os filósofos, no julgamento da humanidade, por que dela fazemos parte. Somos todos parte deste mesmo fel, capazes de passionalmente encontrar os mais eloquentes argumentos para julgar o pecador, como fizemos na inquisição por muitas e muitas vezes, buscando o consolo para nossos dogmas cruéis, para a paz do nosso sono, em argumentos que sempre soubemos ser falsos, para queimar as bruxas, vilipendiar as mulheres, trair os fracos, vencer os fortes pela astúcia, pela intriga, pela malícia, até que o mundo, em nome de Deus, caísse aos nossos pés, cheios de falsidades, de abutres e de prazeres infernais.

No fio do inferno, onde o anjo não pode chegar, escrevi com a pena em punho, a luz de vela, em madrugadas ébrias, as piores peças, as mais pornográficas relações. Fiz com que o povo consumisse o mais amargo cálice de verdades impostoras, enchendo meus cofres de riquezas e meus cúmplices de vaidades pagas pela minha presença. Vi deitarem-se lindas mulheres, sedentas de mim na cama, com desejos ardentes e sinceros, colocadas depois aos escravos, como se fossem meras aves sem valor, corações em razão, vindas do nada, cegas de ambição para concubinarem-se comigo, o rei dos reis, o grande tolo de todos os tolos, por que se o sol não se punha sobre a sombra dos meus pecados pelo tamanho do meu reino, meu coração sempre fora escuro e doído.

Sobre a pena e o tinteiro, navegando em mares bravios, pela luz das fedorentas velas de gordura, eu escrevia sentenças em várias mãos, falsificando assinaturas e caligrafias, via o suicídio de homens e mulheres deixarem sobre o peso da minha chantagem a vida e nos encontramos tantas vezes no inferno.

Eu porém, sempre forte, nunca temi. Sempre jurei recomeçar, sempre encontrei alguma generosidade em uma alma fingida de pureza e escrevi também para o canto nas praças e nos teatros, as mais lindas peças de amor. Consegui colocar códigos penais que levaram sociedades ao progresso e ao respeito, encontrei corações gratos que me amaram. Vi as luzes da verdade perto de um homem que nunca me julgou, mas que ao ver-me cansado caído aos seus pés, também não me humilhou. Não me deu a responsabilidade de transformar-me de réptil em anjo num curto espaço de tempo, por saber ser impossível. Apenas gravou seus olhos claros e profundos em minha alma e um desejo profundo de estar naquele lugar onde a memória dos seus olhos refletia para mim. Rezei para não esquecer aquele olhar e esqueço todos os dias. Chorei para não ser mais o lobo de todos os lobos e todos os dias bebi o sangue de ovelhas inocentes, comprando pela violência das minhas armas, arrancando jugulares, vampirizando em pastos serenos, ou assando a carne dos inimigos, sem tempo, sem compreensão, apenas andando em uma direção que nunca fui capaz de compreender. Andando, aprendendo, trabalhando, exercitando, buscando a força e a verdade, mas a bússola do meu coração sempre apontando para o chão.

Nessa tempestade moral, quis me ajoelhar na beira do mar e ver os olhos do céu me chamarem para a inconsciência. Não sou o outro. Não posso ser o outro. Mas aquele que me amou considerando tanta vileza em uma só alma, no passar do tempo de tantas vidas, como poderia me amar? Qual a visão do ser que se entrega ao sacrifício da morte e pede perdão para os seus algozes? E eu, que poderia não estar, mas lá estava, buscando mais uma vez o protagonismo, e ainda aqui estou, por que quero chorar e morrer de tédio na constante busca pelo topo da pirâmide social, que sempre morre, sempre se desgasta, sempre acaba?

Não viver ou não dizer mais nada diante do ilícito, é morrer na memória, não lembrar a história, confiar cegamente. Mas quem é esse que pode ser traído tantas vezes e sentir-se indiferente? Não sentir o peso do orgulho em seu subconsciente? Não sentir o desejo de vingança, não sentir a desesperança, não sentir que está na estaca zero quando pensa amar, quando o traidor espera apenas a oportunidade certa para o golpe, como aquele no Senado. A faca nas costas, o sangue na garganta misturado com o fel, a decepção nos olhos do pai, o desejo de ser imortal, enquanto mais e mais vezes o ódio dos seus se refletia em cortes na carne, a mármore fria, o brilho das glórias se misturando com o cheiro dos cadáveres deixados para trás na conquista do ouro e o homem comum, só esperando em si, o tempo passar, sem nem mesmo vislumbrar a história que nos trouxe até aqui.

Triste mesmo é a ignorância do ignorante consciente. Triste é a dor de quem nem sabe por que sofre. Triste é o desamor.

Há no filósofo porém um desejo constante de explicar tudo. De dizer ao outro o que entende de melhor sobre si mesmo. De traduzir em conceitos e palavras o que sente.

Uma tempestade pode ser boa ou pode ser ruim e pode ser tudo, não apenas duas coisas. A questão será a oportunidade de se reconstruir após uma tempestade. Uma tempestade moral, será o Vesúvio sobre Pompéia, sobre Herculano. Corações viram pedra. Verdades se marmorizam. Ossos se fundem com ouro. Almas partem do corpo sem se despedir. E depois…o que virá? Então…nos conceitos perdidos da ética, da moral corrompida, dos sofrimentos inevitáveis do amor incompreendido, da ingratidão, restará ao filósofo pensar no tempo e suas habilidades. Que seja então eterno e que se dê tempo de reconstruir a verdade em bases mais sólidas. Enquanto isso, que cada um reflita sobre a própria dor, sobre o próprio desamor, por que as desinteligências instaladas nos brilhantes cérebros de intelecto moderno e de conceitos da moda, ainda são incapazes de ver o mínimo sequer de qualquer pequena ação, os desdobramentos de toda a vontade e por isso, vivem no biombo da verdade, até que depois de algum tempo de paz e de falsa felicidade, venha outra tempestade, venha a dor, venha a velhice de verdade, a morte acabando com a vaidade…e depois disso? O que? Não se pensa. Não se age. Não se respeita. Apenas leviandade….Até que a dor que te cabe, te ache, e simbolizada pela espada invisível e inevitável da verdade, te curve sob o peso do labirinto de si mesmo sem te dar facilidades, engolindo as rotas e as chaves. Até que caves implorando piedade, antes que seja tarde. Que o inferno ao teu redor te asse mas não te mate. Te cozinhe mas não te desmaie. Vivendo todos os dias o mesmo dia, sem que o tempo passe. Sentindo que te comem a carne as metástases da ansiedade, pois daqueles que tu disseste amar, não tens propriedade, e os que te disseram te amar, de ti já nem sabem.

Tempestade…temporalidade…temperamentais inverdades…temeridades.

Tempo. O que escondes dos lentos? O que roubas dos nojentos? O que condenas aos sarnentos? Os purulentos? Aos sacramentos? Por que preciso ser tão vivo por dentro? Por que a alma sente tanto desejo escarrento, quando era tão simples ignorar e fingir e colocar pedras sobre as fossas, deixando ferverem e germinarem os vermes nas fezes dos esgotos e sumidouros da consciência, esperando qualquer tempestade ou temporal?

Por que Deus preciso pensar tanto e tão pouco? Por que no sol o corpo queima-se, sem esfriar a solidão da alma? Já com mais da metade do tempo consumido em uma carne que se desgasta e em cabelos que branqueiam, só vejo drama, só vejo guerras, só vejo tragédias, sem esquecer o olhar de pai, sem esquecer teu olhar Senhor, mas também cheio ainda dos brasões da república antiga gravados ou tatuados em minha alma, cheios de orgulho pela grandeza de tempos imemoriais, querendo ver sofrer aquele que me fez chorar, sem saber amar, precisando confessar hipocrisias e impiedades para sair deste labirinto. Corações de vidro, olhos de mármore, pés de granito, cérebro de pútridas carnes. Me mostre por favor meu criador, a melhor razão da verdade. Onde possa o guerreiro confiar de que sua batalha vale a pena. Onde a história não se torne apenas filha dos delírios do historiador e suas penas histéricas e pequenas. Onde foi possível ver a tensão das armas rasgando as vísceras do valoroso guerreiro, do bárbaro matreiro, do experiente cavalheiro. Onde a pólvora estrondosa, o tanque guerreiro, leva ódio e desespero. Até quando este desterro? Por que tamanho desalento? Se nem poder nem força eu tenho, se nada repercute do que vejo, apenas temo, por que o homem de hoje é tão matreiro, que mata e dorme com o terço debaixo do travesseiro.

É um inferno por inteiro…o que vejo. Só posso pensar em esperar que seja auspicioso o sábio do tempo e que nos dê o alento. Deus, onde quer que estejas, não nos deixes ao relento de nós mesmos. Não temos mais conselhos, nem para nós mesmos.

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