A mamãe salva – por Moha Sousa

por Moha Sousa – jornalista, produtor cultural

Numa madrugada distante do século passado, na Avenida Oswaldo Aranha, em Porto Alegre, fui sacudido pela força extraordinária da frase “mãe só tem uma”. O caso se deu lá no Bar do Lola. O dono ainda era o Seu Manoel. “Um português com cara de bicho-carpinteiro, que não sossegava nunca, sempre limpando o balcão de fórmica branca, arrumando apetrechos da lida ou espetando frangos na televisão de cachorro”. O meio campo do atendimento no balcão quem fazia era sua sogra, que sempre mandava poucas e boas para o genro nicotinado, conforme fumaçou o doutor Telmo kiguel. Acomodado na mesa três deste espaço familiar, eu biritava com um amigo, renomado professor de matemática, e mais duas anônimas gurias espetaculares. “Estamos feitos. Elas estão afins de sexo e diversões analógicas”, garantiu o acadêmico parceiro. O redondo relógio da parede azul já tinha virado do sábado para o segundo domingo de maio. O dia das mães começava com as filharadas soltas e desgarradas. Todas na maior gandaia e prospectando sacanagens. Lá no fundão, o Frangão, um conhecido punk de cabelo moicano de Canoas, bebia vodka no bico da garrafa e esgoelava um hit da banda Sangue Sujo. “Eu não gosto de racista. Eu não gosto de engenheiro. Eu não gosto de magrinho. Eu não gosto de maconheiro. Eu não gosto de puteiro. Eu não gosto de você. Eu não gosto de matemáticos. Eu não gosto de ninguém. Eu não gosto”. Naqueles tempos, a cena cultural era movida pela rebeldia política, anarquismo, individualismo, bundimos, transgressões sociais e provocações generalizadas. Eu também não gostava do jeito da minha vizinha, por exemplo, uma escultural argentina balzaquiana desalmada que me rodeava e rodeava e nada de fornicar. Pensava nisso, quando o amigo matemático geometrou a frase que deu tetra, em alto e bom som: “Todo cara que escreve o nome da mulher no próprio corpo é corno ou um baita dum enrustido filho da puta”. Silêncio de cemitério no bolicho do portuga, que, sentindo a temperatura, tirou o clássico cigarro das orelhas. De camiseta sem mangas, o tatuado sujeito se levantou. O porte era o dobro do amigo professor. Avançou em passos curtos e esbravejou: “Repete, repete o que você falou da mamãe”. Fungava e cutucava com o dedo indicador a tatoo no anabolizado bíceps do braço direito: “MM, eu te amo”. O doutor das ciências exatas saltou da cadeira e devolveu: “É isso ai, todo tatuado é um filho da puta. Um imbecil em potencial”. A nuvem da tragédia cobriu o etílico ambiente. Tão rápido quanto o direto de direita que atingiu o meu amigo bem no meio da testa. Após o impacto, todos viram um corpo miúdo decolar e desabar em cima da mesa quatro. Boquiaberta, a plateia ignara mirava a vitima em busca de algum sinal de vida. Longos segundos depois e com a dignidade que lhe restava, o professor universitário se recompôs. Ajeitou o que havia sobrado do par de óculos tipo John Lennon e encarou o agressor. Os olhares do publico, como num jogo de tênis, mudaram de banda. O foco girou para o brutamonte. De punhos cerrados, ele ameaçou: “Quer mais?”. Meu querido amigo, içou a mão esquerda com a palma aberta e sentenciou com a maior dignidade do mundo: “Não precisa. Mãe, só tem uma”.

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