Sobre o papel do Estado na economia e Covid-19 – por Márcio Pochmann

As bases do liberalismo econômico e seu evolucionismo contemporâneo (ordoliberalismo, neoliberalismo e anarcoliberalismo) assentam-se no pressuposto das forças de mercado suficientes para promover e sustentar o desenvolvimento capitalista. Mas isso não significa, necessariamente, a ausência extremada do Estado.

Márcio Pochmann – Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.

Tratam-se, todavia de formas distintas da governança de sociedades em plena prevalência do modo de valorização do capital. Para tanto, o estilo de governos que buscam exercer o poder político sobre todos os aspectos da vida humana, também conhecido por biopolítica.

Desde a sua ascensão, no último quartel do século 20, a governança de tipo neoliberal tem operado o processo de acumulação do capital crescentemente submisso à dominância financeira. Quarenta anos depois, os resultados alcançados apontam para três tendências marcantes no modo de funcionamento atual o sistema de produção e distribuição capitalista.

A primeira tendência relacionada ao movimento de monopolização da propriedade do capital a operar cada vez mais concentrada em não mais de 500 grandes corporações transnacionais. Ficou para trás, assim, a antiga estrutura que já era imperfeita de competição intracapitalista, pois constituída por grupos econômicos quase exclusivos de produção e distribuição de bens e serviços no mundo globalizado.

O gigantismo concentrador das propriedades acompanha o salto tecnológico, sobretudo das informações e comunicações. Comisso, a monopolização avançada do capitalismo permitiu descentralizar a estrutura de produção e distribuição de bens e serviços em distintos fragmentos territoriais, cuja dinâmica de enclave econômico questiona a autonomia do sistema interestatal que emergiu do segundo após guerra mundial no século passado.

Assim, não mais que 600 localidades no mundo compreendem parcela majoritária do sistema desvalorização do capital. Esta segunda tendência capitalista impôs o apequenamento dos Estados nacionais perante o gigantismo das corporações transnacionais, cuja dimensão do faturamento anual supera a totalidade do Produto Interno Bruto de muitos países.

Somente 11 do conjunto de 200 países existentes nos dias de hoje no mundo possuem orçamento governamental superior ao faturamento das grandes corporações transnacionais. Simultaneamente ao enfraquecimento do papel dos Estados nacionais, bem como da Organização das Nações Unidas (ONU)  que protagonizava o sistema interestatal, emergiu uma espécie do senado global a ocupar a coordenação capitalista através do Fórum Econômico Mundial (FEM).

Dessa forma, anualmente pelo menos, o FEM se reúne e atrai representantes governamentais de várias nações para que recebam orientações de como administrar o capitalismo em seus países. Ou seja, a subordinação da política aos interesses econômicos dominantes, o que tem esvaziado a força do voto do eleitor e tornado cada vez mais descrente a experiência da democracia.

Neste mesmo sentido a terceira tendência que consagra o capitalismo atual decorre do estágio avançado de consolidação generalizada do trabalho precário. A desconstituição de estratos intermediários da estrutura  ocupacional, denominados de classe média assalariada, e refluxo da tradicional classe trabalhadora, sobretudo de base industrial, somam-se à difusão ideológica do sujeito social competitivo e empreendedor de si mesmo, descrente da ação do Estado e das políticas públicas de ação coletiva.

Em grande medida, assiste-se ao enfraquecimento do projeto de sociedade salarial na transição acelerada do capitalismo de base industrial para o de serviços. No cenário da globalização conduzida pelas grandes corporações transnacionais, organismos multilaterais herdados da antiga ONU, como Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros, praticam a vassalagem de difundir constantes recomendações aos países que contribuem para deformar o sistema de regulação nacional (saúde, trabalho, educação, previdência e outros) em proveito dos interesses privados e do capitalismo de dimensão global.

Embora funcionando com dificuldades, quase sempre ocultadas pela monopolização da mídia comercial e das tecnologias de informação e comunicação em apenas 6 grupos econômicos no mundo, a governança capitalista de ênfase neoliberal completou quatro décadas de hegemonia mundial. Mas seus constrangimentos maiores tendem a se tornar mais agudos nos momentos extremos, quando problemas multidimensionais se acentuam, como na crise global de 2008 e agora com a pandemia do Covid-19.

Diante disso, o presente texto tem por objetivo recuperar brevemente a experiência de atuação do Estado no Brasil. Dessa forma, espera-se poder contribuir com elementos explicativos para a indecência praticada pelo governo atual no enfrentamento da pandemia do coronavírus, cujos efeitos econômicos e sociais tendem a ser os mais graves de toda a história republicana do país.

PAPEL DO ESTADO

No Brasil, o ideal liberal traduzido por Silvestre Pinheiro Ferreira e Hipólito da Costa no começo do século 19 teve como principais adeptos os segmentos voltados para a economia de exportação e importação. Na época, formada majoritariamente por latifundiários e escravistas interessados na combinação das estruturas tradicionais de produção do agrarismo arcaico do livre comércio.

Essa perspectiva correspondeu a mais de um século de existência, uma vez que se prolongou desde antes da Independência nacional (1822) até o final da República Velha (1930). Sua persistência no tempo, capaz de superar tanto o ingresso no modo de produção capitalista, com a soltura legal dos escravos a partir de 1888, como a transição da Monarquia para a República, em 1889, somente se mostrou viável durante a predominância da sociedade agrária.

Com a passagem para a sociedade urbano e industrial, a partir da Revolução de 1930, a ineficiência do Estado liberal tornou-se cada vez mais explícita, incapaz de justificar a continuidade do antigo e arcaico agrarismo. A incompatibilidade ficou ainda mais explícita ao final do Estado Novo (1937-1945) co a polêmica gerada entre a necessidade da industrialização do país, defendida, por exemplo, pelo líder industrial paulista Roberto Simonsen, e a oposição agrarista decorrente da perspectiva liberal protagonizada pelo economista carioca, Eugênio Gudin Filho.

O entusiasmo demonstrado inicialmente pelo governo de Dutra (1946-1951) de retorno ao liberalismo da República Velha (1889-1930) se mostrou verdadeiro “fogo de palha” frente à imediata e profunda frustração econômica pronunciada pela liberação na política econômica. Nem mesmo com a passagem fulminante de Gudin pelo Ministro da Fazenda entre setembro de 1954 e abril de 1955 no governo de Café Filho, imediatamente após a morte de Getúlio Vargas em 1954, permitiu que o liberalismo voltasse a triunfar exitosamente na construção da sociedade urbana e industrial.

Outra presença ilustre do liberalismo no governo brasileiro transcorreu com o controverso personagem Roberto de Oliveira Campos na condição de ministro do planejamento no início da Ditadura Civil-Militar (1964 01985), uma vez que foi acompanhada da criação inimaginável de 274 empresas estatais. Antes disso, no período denominado de populista, Roberto Campos havia sido um dos idealizadores da Petrobrás, durante o governo de Getúlio Vargas (1951-1954), e presidente do BNDES e participante, ainda, do Plano de Metas no governo JK (1956-1961).

Na crise da dívida externa, logo no começo dos anos de 1980, as bases pelas quais a sociedade urbana e industrial encontrava-se sustentada sofreu forte impacto, começando a ruir. Nesse sentido, o receituário do Fundo Monetário Internacional adotado pelo último governo da Ditadura Militar (João Figueiredo, 1979-1985), o último do período autoritário, os grandes grupos do setor privado foram salvos de sua ineficiência. Em contrapartida, os encargos privados decorrentes do endividamento externo foram transferidos para o Estado, que promoveu recessão, desorganização das finanças públicas, superinflação e endividamento interno promotor da ciranda financeira que compôs parte significativa da herança negativa do regime autoritário na transição para o ciclo político da Nova República (1985-2016).

Assim teve início o ciclo de reestruturação do setor produtivo estatal constituído nas cinco décadas anteriores de promoção do projeto de industrialização nacional. O primeiro movimento entre os anos de 1981 e 1984 aconteceu com a privatização de 20 empresas nos setores de papel e celulose ( Rio Grande Cia.de Celulose do Sul, Florestal Rio Cell, Indústria Brasileira de Papel – Indrapel), têxtil (Cia.América Fabril, Fábrica de Tecidos Dona Isabel, Fiação e Tecelagem Lutfala), siderurgia (Nitriflex S/A – Indústria e Comércio, Cia.Bras. de Cimento Portland Perus), energético (Força e Luz Criciúma S.A) e complexo de audiovisual (Encine Audiovisual), gráfica (editora José Olympio) e de educação (Sindacta).

A receita gerada por esse ciclo inicial de privatização foi estimada em US$ 274 milhões à época e com impacto sobre 157 mil empregos enquanto resultado direto da venda, em grande parte, das empresas privadas falimentares que tinham sido recuperadas anteriormente pelo Estado, através dos financiamentos do BNDES. Por fazer parte da doutrina de Segurança Nacional, a privatização na ditadura não contemplou empresas que eram consideradas fundamentais para o desenvolvimento nacional e o fortalecimento do setor privado.

Na segunda metade da década de 1980, sob o governo civil de Sarney (1985-1990), derivado da aliança entre PMDB e PFL, ocorreu o segundo movimento do ciclo de reestruturação do setor produtivo estatal. A perspectiva gerada pelo interesse original de constituição de grandes holdings gestoras do aparato estatal, conforme o modelo italiano do segundo pós-guerra de reconstrução econômica terminou sendo substituída pela simples privatização de 18 empresas estatais, o que resultou em receita de US$ 549 milhões e impactos sobre 82 mil empregos.

Na “Era dos Fernandos”, entre 1990 e 2002, a prevalência do receituário neoliberal demarcou o terceiro movimento no ciclo de reestruturação do setor produtivo estatal. Em realidade, o aprofundamento da onda interna da privatização correspondeu a grandes resultados efetivos, o que a colocou na segunda maior posição privatizante do mundo à época, somente inferior ao desmonte da URSS. No Brasil foram vendidas 123 empresas estatais, com receita de US$ 75 bilhões e impactos sobre 546 mil empregos.

Em geral, o discurso privatista da época tinha como argumento central, a ineficiência das empresas públicas decorrente de sua inoperância administrativa e incompetência burocrática a onerar o fundo público. Com a privatização, dizia-se que o recurso público obtido da transferência das empresas estatais para as empresas privadas, seria alocado nas áreas sociais, em benefício da população, sobretudo a mais carente.

Mas isso, todavia, não correu muito pelo contrário, uma vez que houve carregamento dos recursos públicos para o pagamento dos serviços do endividamento do Estado devido aos credores privados, fundamentando a financeirização improdutiva da economia. Também foi disseminado que a desmontagem do setor produtivo estatal viabilizaria a constituição de grandes grupos privados com capacidade de competir no âmbito da globalização capitalista.

Pela inserção passiva e subordinada efetuada ao longo dos anos de 1990 à globalização, o Brasil não apenas perdeu o acesso soberano às cadeias globais de valor como a transferência de empresas estatais para o capital privado nacional se mostrou inviável. Assim, constatou-se com grande parte da privatização brasileira terminou privilegiando a presença do capital externo e de fundos públicos.

Sem ter gerado a difusão de campeãs nacionais, parcela das empresas privadas foi incorporada pelas corporações transnacionais. Além de elevar ainda mais consideravelmente a presença do capital externo no comando da economia nacional, o país perdeu a oportunidade de ampliar a sua capacidade produtiva.

Ao longo dos anos de 1990, o ingresso dos Investimentos Diretos Externos no Brasil se mostrou incapaz de elevar a taxa interna dos investimentos, o que se traduziu no prolongamento do contido dinamismo econômico nacional e no elevado desemprego aberto. Ao mesmo tempo, o endividamento do setor público alcançou inédito patamar, concomitante com o desencadeamento antecipado da desindustrialização.

Nos governos do PT (2003-2016), a reestruturação do Estado contou com a criação de 43 novas empresas públicas, o que representou a nítida reversão do sentido privatizante herdado dos governos neoliberais anteriores. Ao mesmo tempo em que constituiu a quarta fase do ciclo da reestruturação do setor produtivo estatal, mostrou ser fundamental para garantir a expansão econômica mais acelerada, com a elevação da taxa de investimento e, por consequência, a aproximação do pleno emprego, a manutenção da baixa inflação e a redução da dívida pública em relação ao PIB.

Tudo isso, contudo, que se apresentou insuficiente para interromper o processo da desindustrialização precoce não terminou retraíndo, por outro lado, a antecipada passagem para a sociedade de serviços. No desmonte da antiga sociedade urbana e industrial, os sujeitos históricos associados à defesa do  papel do Estado na economia foram, por consequência, fragilizados.

Sinal de que a alteração na correlação de forças no interior da composição das classes dominantes se tornava menos favorável ao papel do Estado empreendedor. A simultânea ascensão da burguesia comercial e improdutivamente financeirizada, mais preocupada em comprar barato para vender caro, se viabilizou novamente pela retomada do receituário neoliberal a permitir a expansão tanto o capital rentista quanto do agronegócio, interessado nas teses do livre comércio que dominou os governos na segunda metade da década de 2010.

Em síntese, a composição da classe dominante e atualmente zeladora do receituário neoliberal, passou a corresponder, guardada a devida proporção, àquela vigente durante a arcaica e longeva sociedade agrária, originalmente defensora do liberalismo no século 19.

Nesse sentido, a ascensão golpista em 2016 favoreceu amplamente a adoção dos pressupostos do anarcocapitalismo, sobretudo no interior do recente governo Bolsonaro. Trata-se, em geral, de desfazer, não reestruturar, o setor produtivo estatal, entregando-o as empresas privadas nacionais ou estrangeiras, inclusive estatais pertencentes a outros países.

Com isso, o país voltou a registrar novamente a presença de mais uma década perdida, a primeira do século 21. Apesar do desempenho econômico e social positivo verificado entre os anos 2010 e 2014, a segunda metade da década de 2010 (2015-2019) foi caracterizada pelo decrescimento econômico, exclusão social e asfixia do regime político democrático.

Considerações finais

Com a continuidade na adoção dos programas de austeridade fiscal, o Estado ficou cada vez mais desassistido, enfraquecido para executar o que se esperaria dele em casos gravíssimos com a atualidade imposta pela pandemia do Covid-19. O monitoramento preciso acerca da evolução da contaminação do coronavírus revela a rapidez com que ocorre, por exemplo, a corrosão das condições básicas de funcionamento da sáude públcia.

No caso atual da economia,por outro lado, as informações disponíveis indicam o comportamento distinto em relação às mais graves crises capitalistas do último século. De imediato, o choque promovido pelo Covid-19 levou à parada ampliada e quase imediata das atividades econômicas. Em consequência, a queda na movimentação dos negócios sem paralelo ao verificado, por exemplo, na crise global de 2008 ou na distante Depressão de 1929.

O inédito grau de concentração do capital em poucas e grandiosas corporações transnacionais revelou a dependência e subordinação do sistema produtivo das nações à fragmentação e complementariedade imposto pelas cadeias globais de valor. Ao mesmo tempo, a conectividade generalizada dos negócios em tempo real e em qualquer parte do mundo estabeleceu convergência nas decisões empresariais em direção à retração das atividades econômicas.

Nesse sentido, o afastamento da percepção inaugural de parada econômica decorrente do choque do coronavírus assemelhar-se ao “pit stop” das competições automobilísticas. Também o enfraquecimento da hipótese da crise de curto prazo no formato em “V”, com descida e ascensão rápidas no comportamento dos negócios.

Atualmente, as informações que surge a respeito do comportamento inicial da economia indicam a existência de estrangulamentos importantes. Se acrescidos à especificidade de situações preexistentes nas atividades produtivas e financeiras em cada país, tendem a conformar horizonte inviável de recuperação do conjunto das atividades econômicas no curto prazo.

Em sendo assim, as ações governamentais podem expressar o sentido geral errático. Apesar da magnitude em termo de volume dos recursos disponibilizados por países, o foco parece se concentrar mais no curtíssimo prazo, quando os gargalos identificados podem estar requerendo planejamento de médio e longos prazos.

Em geral, as atuais intervenções governamentais tendem a repetir o que já havia sido realizado exitosamente em 2008. Naquela oportunidade, acrise estava assentada originalmente na esfera creditício-financeira a contaminar a economia real.

Por isso, a aquisição de títulos tóxicos/podres pelos bancos centrais e a inundação de recursos públicos para os agentes privados de parte dos tesouros governamentais contribuíram para o estancamento da crise no tempo contido. Em outros países, como nos BRICS, por exemplo, a solução encontrada passou pelo avanço do crédito público a programas de financiamento produtivo.

Além dos programas de estímulo à produção e aos investimentos em infraestrutura, a difusão dos mecanismos de garantia da renda à população, sobretudo aos mais vulneráveis. Tudo isso se mostrou ainda mais positivo, evitando a elevação da desigualdade, conforme  observada na maior parte dos países que optaram por ajudar especificamente às grandes corporações empresariais em detrimento aos mais pobres.

Até o momento, ao que parece, a natureza da crise na saúde pública a contaminar a economia brasileira requer ações de novo tipo. Ou seja, o conjunto de medidas que desagradam à lógica capitalista, recuperando o papel do Estado em novas bases.

Mas precisamente, a centralização do planejamento do médio e longo prazos, como numa situação de guerra. Assim, a reestruturação geral dos sistemas produtivos com forte ênfase na reconstrução dos sistemas industriais, na reconversão do rentismo instalado na estrutura bancária, na recentralização da conta de capitais, na reconsolidação dos complexos estatais, entre outros.

Simultaneamente, o recondicionamento à inatividade das massas excedentes às necessidades do capital sustentada por esquemas múltiplos e variados de garantia de rendimento pelo fundo público a avançar sobre o excedente econômico. Para tanto, a nova e intensa base da tributação sobre a produtividade dos setores econômicos dinâmicos e tecnologicamente mais avançados, os segmentos sociais já enriquecidos e as atividades especulativas e rentistas.

Somente a formação de uma nova maioria política permitirá caminhar em direção ao horizonte civilizatório. Do contrário, a barbárie pode se generalizar muito rapidamente. A ver.

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